A guerra dos 12 dias e o duplo padrão ocidental no Oriente Médio

 


Então acabou a guerra dos 12 dias. Foi assim que Donald Trump, com sua habitual concisão marqueteira, apelidou o recente conflito entre Israel e Irã — uma guerra breve, intensa e revestida de simbolismos. Mas, como de costume, o que menos aparece nas manchetes é o pano de fundo, o tabuleiro geopolítico onde se joga essa partida brutal.

A mídia ocidental, sempre pronta a classificar o Irã como um “regime fundamentalista religioso”, esquece — ou escolhe esquecer — que Israel também é um Estado fundamentado na religião. A autodefinição de Israel como “Estado judeu” não é apenas cultural ou simbólica; ela tem implicações diretas na cidadania, na ocupação territorial e nos direitos civis de milhões de palestinos.

A seletividade do discurso é tamanha que poucos lembram de outro episódio carregado de hipocrisia: a Guerra do Golfo de 1991. Naquele momento, os EUA mobilizaram uma coalizão internacional para expulsar Saddam Hussein do Kuwait — um país descrito pela imprensa como um “Estado moderado”, mas que à época era (e ainda é) mais autoritário e teocrático do que o próprio Iraque.

Poucos sabem — ou foram informados — que o emir do Kuwait, Jaber Al-Ahmad Al-Jaber Al-Sabah, fugiu para os Estados Unidos levando consigo seus escravos pessoais. Sim, escravos. Essa palavra quase desapareceu das manchetes. Como nota o historiador Matthew Hopper, "a escravidão doméstica persistiu no Golfo até bem depois da abolição formal, e o Kuwait foi um dos últimos a reconhecer o problema" (Hopper, Slaves of One Master, Yale University Press, 2015). Mas isso não impediu que o país fosse tratado como um aliado estratégico e "moderado".

A ironia histórica atinge seu auge quando comparamos o status das mulheres em diferentes países da região. No Irã, apesar das muitas restrições e do conservadorismo clerical, mulheres frequentam universidades em massa, cursam engenharia, medicina, literatura. Segundo dados da UNESCO, mais de 50% dos universitários iranianos são mulheres. Enquanto isso, no Kuwait — esse “aliado moderado” — as mulheres enfrentam restrições ainda mais rígidas e a vida política é praticamente inexistente.

A pergunta que se impõe é simples, e talvez ressoe na mente de qualquer cidadão iraniano: "Se o Ocidente diz que não faz negócios com o Irã porque não somos uma democracia e tratamos mal as mulheres... então quem, exatamente, é a democracia que respeita as mulheres aliada dos Estados Unidos do outro lado do Golfo Pérsico?"

A resposta, claro, é desconfortável. Porque a verdade é que o discurso democrático do Ocidente é seletivo. Ele não se guia por princípios universais, mas por interesses estratégicos. O Irã está no “eixo do mal” desde que ousou dizer não a Washington em 1979. Já regimes como o Kuwait ou a Arábia Saudita — mesmo com seus históricos de repressão, misoginia institucionalizada e ausência de democracia — recebem blindagem diplomática em troca de petróleo e estabilidade geopolítica.

O Ocidente exige que o Irã se democratize e trate melhor suas mulheres. Mas fecha acordos de bilhões com monarquias absolutistas que nem fingem ser democráticas. É um duplo padrão tão transparente que se torna cínico.

O mais grave é que essa narrativa seletiva contribui para reforçar ressentimentos, alimentar radicalismos e sabotar qualquer possibilidade real de aproximação cultural ou diplomática. No fim, a guerra de 12 dias termina, mas o conflito mais profundo — o das ideias, dos valores e da hipocrisia internacional — continua em curso.


Referências:

  • Hopper, Matthew S. Slaves of One Master: Globalization and Slavery in Arabia in the Age of Empire. Yale University Press, 2015.

  • UNESCO Institute for Statistics. "Women in Higher Education: Iran." uis.unesco.org

  • Human Rights Watch. "Kuwait 2023 Human Rights Report."

  • BBC News. "Iran's Universities and Women."

  • The Guardian. “US Relations with Gulf Monarchies: The Oil-Forged Alliance.”

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