O Mercado Contra a Democracia: Velhas Nobrezas em Novas Roupagens

 


Há algo profundamente disfuncional na relação entre o “mercado” e a democracia. Não me refiro aqui ao conceito abstrato de trocas econômicas, mas ao sistema financeiro, grandes investidores, rentistas e conglomerados que, sob o eufemismo de “mercado”, agem como se fossem a nova nobreza do Antigo Regime: exigem privilégios, acumulam poder e querem manter os pobres sob rédea curta.

No Brasil, é cada vez mais comum a frase – com origem em redes sociais e rodas de boteco políticas – de que o “mercado”, liderado simbolicamente por figuras da Faria Lima, quer “enforcar os aposentados com as tripas dos pobres”. Forte? Sem dúvida. Mas quem observa o comportamento do mercado diante de pautas sociais básicas como o salário mínimo ou a Previdência percebe que há uma verdade incômoda aí.

Recentemente, o governo federal foi pressionado a não aumentar o salário mínimo em linha com a inflação e o crescimento econômico. Mais grave ainda foi a tentativa de romper o vínculo constitucional entre o piso salarial e os benefícios previdenciários, o que poderia condenar milhões de aposentados à miséria. O pretexto? “Responsabilidade fiscal”. Na prática: mais lucros para rentistas e menos comida no prato do povo.

Como bem resumiu o economista francês Thomas Piketty, “quando o retorno do capital excede o crescimento da economia, como aconteceu no século XIX e parece estar voltando a acontecer no século XXI, o capitalismo gera desigualdades insustentáveis” (O Capital no Século XXI, 2013). No Brasil, isso se expressa pela tentativa constante da elite de cortar gastos sociais, especialmente em saúde e educação, ao mesmo tempo em que se recusa a discutir a taxação de grandes fortunas — algo que 99% da população apoia, mas que é tratado como heresia pela elite financeira.

A direita ligada aos interesses de mercado, com ampla maioria no Congresso Nacional, atua como verdadeira operadora política desses interesses. A cada tentativa do governo de tributar os mais ricos ou regulamentar lucros astronômicos, há uma ação coordenada da mídia corporativa e de redes sociais – muitas vezes movidas a bots e desinformação – para desestabilizar o governo e moldar a opinião pública. A mensagem é sempre a mesma: é proibido tocar nos ricos. O sacrifício deve ser dos pobres.

Esse cenário não é exclusivo do Brasil. A Revolução Francesa nos dá um lembrete histórico claro de onde leva a insustentabilidade da desigualdade e a arrogância de elites que se julgam intocáveis. Quando a nobreza recusava qualquer reforma, e o povo morria de fome, a guilhotina se tornou o remédio amargo da história. O rei Luís XVI, como Nicolau II na Rússia ou os apoiadores de Hitler na Alemanha, achava que tudo estava sob controle. Não estava.

Hoje, vemos elites ocidentais apoiando figuras autoritárias e antidemocráticas, como Donald Trump ou Javier Milei, na esperança de proteger seus privilégios à custa das instituições democráticas. No Brasil, esse pacto entre extrema-direita e mercado se manifesta na retórica moralista: líderes que se apresentam como paladinos da honestidade, apesar de escândalos de corrupção, e que usam a religião como escudo — ou disfarce — político.

Essa simbiose entre elites econômicas e setores religiosos fundamentalistas se assemelha à aliança entre o Primeiro e o Segundo Estado do Antigo Regime francês. No Brasil, pastores bilionários que se dizem evangélicos vendem votos e fiéis como se fossem mercadoria. A religião vira instrumento de controle político e econômico — e não de fé.

A história, como já disse Marx, se repete: “a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”. Mas mesmo farsas perigosas podem sangrar a democracia até seus limites.

O povo brasileiro caminha para um futuro turbulento. A esquerda, muitas vezes, falha em se comunicar com clareza, enquanto a direita domina a linguagem emocional e religiosa das massas — ainda que para enganá-las. Mas nem todo povo pode ser enganado o tempo todo. E, como mostrou a história, mesmo o mais poderoso dos impérios pode ruir diante da força de um povo consciente.

É preciso esperar — e lutar — para que o século XXI não seja apenas um espelho deformado do passado, mas o tempo em que a democracia com bem-estar social finalmente triunfe.


Referências:

  • Piketty, T. (2013). O Capital no Século XXI. Harvard University Press.

  • Marx, K. (1852). O 18 de Brumário de Luís Bonaparte.

  • Ginzburg, C. (1989). O Queijo e os Vermes. Companhia das Letras. (Para entender o papel da religião popular como resistência cultural.)

  • Chomsky, N. (1999). Lucros e o Povo. Bertrand Brasil.

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