Título: A Democracia Segundo o Ocidente: O Caso Irã e a Retórica da Guerra

Hoje, diante das tensões crescentes entre Israel e Irã, a retórica dominante no Ocidente tende a pintar o Irã como a grande ameaça à democracia no Oriente Médio. É uma narrativa comum: na visão ocidental, democracia e direitos humanos são valores universais — mas sua aplicação parece seguir uma lógica profundamente seletiva, guiada mais por interesses estratégicos do que por princípios éticos.

Basta uma rápida olhada no passado para entender a raiz desse paradoxo. Um exemplo emblemático é o golpe de 1953 no Irã, que derrubou o então primeiro-ministro Mohammad Mosaddegh, democraticamente eleito e defensor de uma política secular e nacionalista. Seu "erro"? Ter nacionalizado o petróleo iraniano, até então controlado por empresas britânicas, o que afetava diretamente os interesses econômicos do Reino Unido e dos Estados Unidos.

Temendo a perda de influência na região e a disseminação do nacionalismo anticolonial, as potências ocidentais orquestraram uma intervenção clandestina. A operação, conhecida como "Operação Ajax", foi coordenada pela CIA e pelo MI6. O resultado foi a derrubada de Mosaddegh e a instalação de uma ditadura brutal comandada pelo Xá Mohammad Reza Pahlavi, que, com apoio ocidental, governou com mão de ferro até ser deposto na Revolução Islâmica de 1979.

Essa intervenção externa não apenas destruiu uma nascente democracia no Oriente Médio, como também plantou as sementes do antiamericanismo e da radicalização religiosa que o Ocidente hoje condena com veemência. A ironia histórica é gritante.

Como aponta o jornalista e historiador britânico Mark Curtis, em seu livro "Web of Deceit: Britain's Real Role in the World", o Reino Unido e os EUA “nunca hesitaram em derrubar governos populares e democráticos que ameaçassem seus interesses corporativos ou geopolíticos”. A democracia, nesses casos, foi tratada como um bem descartável.


Agora, em 2025, o mundo assiste a uma nova escalada de violência entre Israel e Irã. E mais uma vez, a narrativa hegemônica no Ocidente omite aspectos cruciais dos fatos. Enquanto o Irã participava de negociações indiretas de paz mediadas por Omã e com o aval dos EUA, Israel lançou um ataque surpresa contra alvos em território iraniano. Esse ataque, feito em meio às conversas diplomáticas em andamento, chocou mesmo alguns aliados próximos, por seu caráter inesperado e pela violação flagrante da lógica diplomática.

É legítimo perguntar: como se justifica atacar, de surpresa, um país com o qual se está negociando, e que está em diálogo com seu aliado direto, os Estados Unidos? O paralelo com Pearl Harbor é inevitável. A ofensiva japonesa contra os EUA, em 1941, aconteceu justamente enquanto representantes japoneses negociavam em Washington. A resposta americana foi imediata e implacável. Hoje, no entanto, quando um aliado dos EUA pratica algo semelhante, a Casa Branca responde com apoio irrestrito.

O presidente dos Estados Unidos declarou "total solidariedade com Israel", mesmo diante das evidências de que o ataque matou civis e minou completamente as possibilidades de diálogo. Fica a sensação de que Washington esqueceu sua própria história — ou a interpreta conforme o lado em que seus interesses estão.

Em vez de aproximar os povos da região, ações como essa aprofundam ainda mais o fosso de hostilidade entre o Oriente Médio e o Ocidente, alimentando um ciclo de vingança, ressentimento e violência que já dura gerações. A pergunta que muitos analistas levantam, inclusive dentro dos próprios EUA, é se isso trará mais estabilidade ou décadas adicionais de guerra assimétrica e terrorismo regional.


É importante lembrar que o Irã atual é uma república islâmica teocrática, com todas as suas limitações e problemas. Mas ainda assim, é um Estado com instituições, eleições, parlamento e sistema jurídico próprio. Apesar de críticas válidas ao regime, a ideia de restaurar a antiga monarquia do Xá como parte de um plano de "regime change" — como sugerido por certos setores em Washington — beira a fantasia neocolonial.

Esse tipo de engenharia geopolítica ignora lições básicas de história. Povos não aceitam líderes impostos de fora — e menos ainda monarcas exilados apoiados por potências estrangeiras. O exemplo mais dramático é o do Imperador Maximiliano do México, imposto pela França sob Napoleão III em 1864, durante a invasão francesa do país. Após a retirada das tropas francesas, Maximiliano foi capturado pelas forças republicanas mexicanas e fuzilado em 1867.

A tentativa de reviver esse tipo de imposição externa sobre uma nação soberana não apenas é moralmente indefensável, como também estrategicamente desastrosa. A história mostra, de forma repetida, que intervenções externas raramente trazem estabilidade — e quase nunca trazem democracia.

Como bem disse o escritor uruguaio Eduardo Galeano: “A história é um profeta com o olhar voltado para trás: pelo que foi, e contra o que foi, anuncia o que será.” Que não nos enganemos com discursos simplistas. A história tem memória — e ela cobra.


Fontes consultadas:

  • Curtis, Mark. Web of Deceit: Britain's Real Role in the World. Vintage, 2003.

  • Kinzer, Stephen. All the Shah's Men: An American Coup and the Roots of Middle East Terror. Wiley, 2003.

  • Arquivos da CIA desclassificados sobre a Operação Ajax: https://nsarchive2.gwu.edu/NSAEBB/NSAEBB28/

  • BBC Persian e Al Jazeera English sobre o histórico das negociações e os ataques em 2025.

  • Hobsbawm, Eric. A Era dos Extremos. Companhia das Letras, 1995.

  • Fraser, Ronald. Napoleon III and Mexico: American Triumph over Monarchy. Oxford University Press, 1973.

  • Declarações oficiais da Casa Branca (conferência de imprensa, 2025).

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Democracia: A Gente Ainda Vai Ter Que Lutar Muito

Depoimentos de fim de ano 2006

A Marcha da Insensatez: Como a Elite Está Jogando o Brasil no Abismo Democrático