O fantasma do comunismo: de Marx à sua avó
Assistindo ao vídeo no YouTube “Por que sua tia tem medo do comunismo?”, produzido por Tiago Santineli — que pode ser acessado neste link — percebi um ponto crucial: há um sério problema na forma como a história tem sido comunicada. Apesar de ser advogado, Santineli presta um verdadeiro serviço à historiografia ao montar uma linha do tempo envolvente e provocativa, que nos leva a refletir sobre a construção da realidade capitalista. Ele escancara o absurdo de um sistema que faz as pessoas temerem a "opressão" de ganhar uma casa do Estado, mas celebrarem a "liberdade" de morar na rua.
A construção da imagem do comunismo como algo maligno não é acidental. George Orwell, por exemplo, tornou-se um ícone dessa crítica distorcida — embora ele próprio fosse um socialista democrático. Em obras como 1984 e A Revolução dos Bichos, Orwell critica a burocracia autoritária do stalinismo, mas suas ideias foram apropriadas e manipuladas pelo Ocidente como um ataque genérico a qualquer proposta de socialismo ou poder popular.
O caso de A Revolução dos Bichos é emblemático: o livro foi adaptado em um filme animado em 1954 com financiamento direto da CIA — como revelam documentos desclassificados e estudos como os do historiador britânico Tony Shaw, em Hollywood’s Cold War (Edinburgh University Press, 2007). O objetivo? Associar o comunismo à opressão e ao fracasso desde cedo, inclusive no imaginário infantil.
A Comuna de Paris: o comunismo que deu certo… por 72 dias
Pouca gente sabe — como lembra Santineli — que a primeira experiência comunista real não foi a Revolução Russa de 1917, mas a Comuna de Paris, em 1871. Um governo operário, eleito democraticamente pelos trabalhadores da capital francesa, que implementou medidas que só seriam adotadas nas "democracias liberais" décadas depois, como:
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Educação pública gratuita com materiais fornecidos pelo Estado
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Saúde pública acessível a todos
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Igualdade legal entre homens e mulheres, inclusive com voto feminino
A Comuna foi destruída pelas tropas da burguesia francesa com apoio do exército prussiano — união improvável, mas eficaz para esmagar qualquer ideia de que os trabalhadores poderiam governar a si mesmos. Mesmo assim, o legado da Comuna ecoou em movimentos posteriores, especialmente nos Soviets da Revolução Russa, como reconhecia o próprio Lenin.
Hollywood, CIA e Ivan Drago
A cultura popular ocidental foi cuidadosamente moldada para odiar o comunismo. Dos quadrinhos de Tintim aos vilões dos filmes de ação, o inimigo era sempre soviético, frio, sem alma. O personagem Ivan Drago, de Rocky IV (1985), é o estereótipo perfeito: um robô sem emoções — um projeto de propaganda em plena Guerra Fria. Santineli destaca isso com bom humor, mas o ponto é sério: a construção do “inimigo comunista” foi uma produção ideológica intencional.
Essa propaganda segue viva. Em pleno século XXI, plataformas como Google, Facebook e X (ex-Twitter), dominadas por bilionários, atuam para moldar narrativas políticas globais, combatendo o que chamam de “radicalismo de esquerda”, enquanto lucram com conteúdos extremistas de direita.
Mas o que querem os bilionários?
A ironia que Santineli aponta — e que vale repetir — é que o mundo descrito por Orwell como uma distopia totalitária parece cada vez mais próximo do modelo defendido pelo neoliberalismo do Vale do Silício. Um mundo onde:
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A vigilância é constante (como nas redes sociais e nos apps de entrega)
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A força de trabalho é precarizada, fragmentada e descartável
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Os serviços públicos são privatizados ou extintos
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A desigualdade cresce a níveis medievais
Como afirma o historiador Yuval Harari, “a tecnologia digital pode criar novas classes inúteis” — não porque sejam incapazes, mas porque são desnecessárias ao sistema. Isso soa familiar? Para muitos, sim: um feudalismo high-tech, onde os senhores são CEOs e os camponeses, entregadores por aplicativo.
E os países comunistas de hoje?
Os Estados Unidos sempre justificaram suas guerras e intervenções sob o pretexto de conter o comunismo. Mas que ironia: hoje, países comunistas como China e Vietnã têm indicadores sociais superiores aos dos EUA em várias áreas, como expectativa de vida, acesso à saúde e taxa de pobreza.
No Brasil, onde ainda há resquícios de políticas social-democratas, o SUS é um exemplo de conquista coletiva, universal e gratuito — algo impensável na terra do Tio Sam, onde uma simples ida ao hospital pode custar milhares de dólares.
A tia soviética e a saudade do trem para Moscou
Enquanto no Ocidente nossa tia teme o comunismo, na Geórgia, uma senhora que viveu sob a URSS sente saudades da União Soviética. Não é nostalgia cega, mas a lembrança de um sistema onde ela podia viajar de trem para Moscou ou Astana, estudar de graça, ter atendimento médico universal e uma velhice digna. O colapso da URSS, impulsionado em parte por pressões externas e erros internos, deu lugar à insegurança, desigualdade e à erosão dos direitos sociais.
Conclusão: menos medo, mais história
O medo da sua tia não é culpa dela — é fruto de décadas de desinformação, propaganda e manipulação. O comunismo foi demonizado não por seus erros (que existiram e devem ser debatidos), mas porque ele representa a possibilidade de que o povo possa governar, de que os recursos sirvam à maioria e não a uma minoria bilionária.
Como diz Santineli com seu humor ácido e afiado: “você tem medo do comunismo, mas sonha com as coisas que só o comunismo tentou fazer.”
Se queremos um futuro justo, não podemos seguir presos aos fantasmas criados por aqueles que lucram com a desigualdade. A história precisa ser contada — e hoje, felizmente, ela também pode ser contada com memes, vídeos e ironia no YouTube. Mas precisa, acima de tudo, ser ouvida.
Fontes e referências:
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Santineli, Tiago. Por que sua tia tem medo do comunismo? (YouTube, 2024).
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Shaw, Tony. Hollywood’s Cold War. Edinburgh University Press, 2007.
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Orwell, George. 1984 e Animal Farm.
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Marx, Karl. Manifesto Comunista, 1848.
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Harari, Yuval Noah. Homo Deus: Uma breve história do amanhã, 2015.
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Klein, Naomi. A Doutrina do Choque, 2007.
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