Trump, China e a Insensatez Americana: a hegemonia em xeque
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Por mais de um século, os Estados Unidos foram o farol do capitalismo global, sustentando sua hegemonia sobre três pilares: poderio militar, supremacia econômica e a confiança quase inabalável na segurança dos seus títulos públicos. Essa confiança, no entanto, está sendo erodida — não apenas pelas mudanças geopolíticas do século XXI, mas, sobretudo, pelas escolhas internas dos próprios EUA. E ninguém encarna melhor essa marcha da insensatez do que Donald Trump.
Ao colocar sua agenda personalista acima das instituições, Trump desorganiza não apenas a política americana, mas também afeta diretamente a economia global. O que mais preocupa os investidores hoje não é apenas a dívida dos EUA — que ultrapassou os US$ 34 trilhões em 2024 (segundo dados do U.S. Treasury) — mas o risco político de um país que ameaça a própria democracia em nome de um projeto populista e autoritário.
Pior: a segurança do dólar, moeda global de referência, não está mais totalmente nas mãos dos EUA. Hoje, China e Japão são os maiores detentores de títulos do Tesouro americano. Em março de 2024, a China detinha cerca de US$ 775 bilhões em títulos americanos e o Japão mais de US$ 1 trilhão, conforme dados do U.S. Department of the Treasury. Um movimento estratégico de venda desses papéis, por motivações políticas ou econômicas, poderia desestabilizar a economia americana de forma dramática.
E há precedentes. Nos anos 1980, o Japão cedeu à pressão dos EUA no Acordo do Plaza, revalorizou sua moeda e entrou em uma crise prolongada. A manobra beneficiou Washington, mas custou a Tóquio seu papel de segunda maior economia do mundo. A China, no entanto, é um adversário de outra natureza — ela não apenas rivaliza em termos econômicos como já desafia a hegemonia militar dos EUA no Indo-Pacífico. A URSS, no auge da Guerra Fria, possuía poder militar, mas carecia de comércio. O Japão, por sua vez, tinha comércio e produção industrial, mas dependia dos EUA em termos estratégicos. A China combina as duas dimensões, com a vantagem de não estar disposta a ceder como seus antecessores.
Hoje, a China é a maior potência comercial do mundo, além de ter projetos ambiciosos como a Iniciativa do Cinturão e Rota e um programa espacial competitivo. Se precisasse, teria condições de bancar um novo “Guerra nas Estrelas”. Já os EUA, imersos em uma financeirização extrema da economia e no desmonte de sua capacidade produtiva, enfrentam dificuldades até para renovar sua infraestrutura básica. Um país que não investe seriamente em educação desde os anos 1980 e ainda permite que governadores conservadores sabotem o ensino público em nome da guerra cultural não está preparando seu futuro, mas cavando sua decadência.
O trumpismo é sintoma desse declínio. Sua cruzada ideológica contra universidades, professores e jornalistas não é apenas uma ameaça à democracia: é também um atentado contra a inteligência estratégica do país. Ao desmontar os pilares do conhecimento e da ciência, os EUA sacrificam sua capacidade de competir no longo prazo. Como destacou a jornalista Barbara Tuchman em A Marcha da Insensatez, há momentos na história em que sociedades tomam decisões contrárias ao seu próprio interesse — conscientes dos riscos e das consequências.
Muitos comparam a crise americana à brasileira. Mas há diferenças significativas. No Brasil, temos uma esquerda organizada (ainda que com dificuldades de comunicação), um Judiciário atuante e um Congresso que, por mais fisiológico que seja, oferece freios. Nos EUA, a extrema-direita capturou parte do Partido Republicano, domina estados-chave e ameaça com desestabilizações democráticas de proporções inéditas.
O paradoxo é que os EUA, a maior potência do mundo, carecem de um verdadeiro Partido dos Trabalhadores. Falta-lhes uma alternativa progressista com musculatura política e social capaz de reverter a deterioração institucional, econômica e simbólica que o país enfrenta. O que os EUA precisariam, com urgência, é de um novo New Deal — um Roosevelt do século XXI. Ou, quem sabe, importar um pouco da experiência de Lula, que apesar de todas as contradições, simboliza uma política socialmente inclusiva e economicamente pragmática.
Recuperar a capacidade de investimento público, retomar a liderança tecnológica e reconstruir a confiança nas instituições deveria ser a verdadeira agenda “Make America Great Again”. Mas isso exige visão, algo que Trump e seus seguidores não oferecem. A história pode ser cíclica, mas também pode ser trágica — especialmente quando os erros se repetem com arrogância.
Fontes:
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U.S. Treasury (https://fiscaldata.treasury.gov)
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Barbara Tuchman, The March of Folly (1984)
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Brookings Institution: “U.S. infrastructure investment crisis” (2023)
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The Guardian, “Trump’s education policy agenda threatens public schools” (2024)
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